HOLDING PATRIMONIAL E A DECISÃO DO STF NO RE 796.376

O termo Holding, previsto no §3º do art. 2º da Lei nº 6.404/76 (Lei das S/A), passou a ser utilizado de forma mais abrangente, não se limitando a deter participações em outras sociedades. Diante disto, foi instituído a Holding Patrimonial, que tem o propósito deter a propriedade de bens imóveis.

A Holding está previsto no §3º do art. 2º da Lei nº 6.404/76 (Lei das S/A), que estabelece:

“A companhia pode ter por objeto participar de outras sociedades; ainda que não prevista no estatuto, a participação é facultada como meio de realizar o objeto social, ou para beneficiar-se de incentivos fiscais”.

A Holding Patrimonial tem a finalidade de planejar a sucessão familiar e a proteção patrimonial.

 O capital social da Holding Patrimonial é integralizado com imóveis, sendo dividido em quotas ou ações, dependendo do tipo societário que escolheu (sociedade limitada ou sociedade anônima).

A Constituição da República de 1988, nos termos do inciso I do §2º do art. 156, assegura imunidade na transmissão de bens incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, o que viabiliza financeiramente a constituição da Holding Patrimonial. Vejamos:

§ 2º O imposto previsto no inciso II:

I – não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil; (g.n)

Além disto, o inciso I do art. 36 do Código Tributário Nacional estabelece que o ITBI não incide sobre a transmissão dos bens ou direitos quando efetuada para sua incorporação ao patrimônio de pessoa jurídica em pagamento de capital nela subscrito.

No fim de 2020, o Supremo Tribunal Federal – STF, nos autos do Recurso Extraordinário 796.376, julgado em repercussão geral (tema 796), fixou a seguinte tese:

“A imunidade em relação ao ITBI, prevista no inciso I do § 2º do art. 156 da Constituição Federal, não alcança o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser integralizado“.

O relator do caso, Ministro Marco Aurélio, acompanhou, basicamente, o entendimento do Direito Contábil no sentido de que o valor adicional na integralização de capital social (ágio) entraria na sociedade como reserva de capital, nos termos da alínea “a”, do §1º do artigo 182 da Lei nº 6.404/76, especificamente na conta do patrimônio líquido.

Assim, por se tratar de investimento direto em sociedade empresária, deveria receber tratamento idêntico ao capital social em si, não incidindo, portanto, ITBI sobre a operação.

O voto do relator, no entanto, foi vencido, por placar apertado (7×4), prevalecendo o entendimento exteriorizado pelo ministro Alexandre de Morais (relator para o voto vencedor).

Ao contrário do relator, o voto vencedor alicerçou seu fundamento na impossibilidade de interpretar extensivamente a norma imunizante para abarcar o valor excedente do bem integralizado ao capital social da pessoa jurídica, prendendo-se a uma interpretação gramatical (literal) da referida norma constitucional.

Além disso, o Ministro Alexandre de Morais, em seu voto, apontou que não há qualquer exceção que permita a não incidência de ITBI sobre o valor excedente do bem incorporado.

Como esta decisão do Supremo Tribunal Federal, diversos Municípios têm invocado este precedente para, aplicando-o em total desarmonia com seu real teor e com seus fundamentos, burlar a imunidade tributária prevista no inciso I do § 2º do art. 156 da Constituição Federal.

Certo é que, muito embora a Suprema Corte nada tenha dito neste sentido, os Municípios têm recorrentemente utilizado o RE 796.376 para tributar a diferença entre o valor arbitrado pelos sócios para fins de integralização e o valor de mercado, venal, avaliado ou qualquer outro superior ao escolhido pelo contribuinte na incorporação imobiliária, impondo, assim, considerável limitação da imunidade de ITBI.

O Código Civil estabelece regras gerais sobre a constituição de sociedades limitadas e faculta, no inciso III do art. 997 cumulado com o art. 1.054, que o capital social da empresa compreenda “qualquer espécie de bens, suscetíveis de avaliação pecuniária”.

Por este motivo, aqueles que pretendem constituir uma sociedade limitada ou anônima, podem escolher os bens que, em troca da participação societária a ser adquirida, transferirão para a pessoa jurídica a título de integralização de capital social.

Quando se opta por integralizar capital social através de bens imóveis, tem-se uma transmissão de propriedade imobiliária que, não fosse o art. 156, §2º, inc. I, da Constituição Federal, constituiria fato gerador de ITBI, conforme previsão do inc. II do art. 35 do Código Tributário Nacional.

Neste sentido, os §§ 1º e 2º do art. 23 da Lei nº 9.249/95 dispõe sobre as formas com que uma pessoa física pode transferir seus bens a pessoas jurídicas em integralização de capital, a saber, pelo valor histórico (constante na declaração do IRPF) ou por montante superior a ele. Vejamos:

Art. 23. As pessoas físicas poderão transferir a pessoas jurídicas, a título de integralização de capital, bens e direitos pelo valor constante da respectiva declaração de bens ou pelo valor de mercado.

§ 1º Se a entrega for feita pelo valor constante da declaração de bens, as pessoas físicas deverão lançar nesta declaração as ações ou quotas subscritas pelo mesmo valor dos bens ou direitos transferidos, não se aplicando o disposto no art. 60 do Decreto-Lei nº 1.598, de 26 de dezembro de 1977, e no art. 20, II, do Decreto-Lei nº 2.065, de 26 de outubro de 1983.

§ 2º Se a transferência não se fizer pelo valor constante da declaração de bens, a diferença a maior será tributável como ganho de capital.

Diante disto, ao realizar a integralização do capital da Holding Patrimonial, os contribuintes devem levar em conta os efeitos do dispositivo supracitado, sob pena de tributação de imposto de renda em razão do ganho de capital.

A partir de 01 de janeiro de 1996, com base no art. 17 da Lei nº 9.249/95 os bens declarados pelos contribuintes no imposto de renda – IRPF – pararam de sofrer correção monetária. Vejamos:

Art. 17. Para os fins de apuração do ganho de capital, as pessoas físicas e as pessoas jurídicas não tributadas com base no lucro real observarão os seguintes procedimentos:

I – tratando-se de bens e direitos cuja aquisição tenha ocorrido até o final de 1995, o custo de aquisição poderá ser corrigido monetariamente até 31 de dezembro desse ano, tomando-se por base o valor da UFIR vigente em 1º de janeiro de 1996, não se lhe aplicando qualquer correção monetária a partir dessa data;

II – tratando-se de bens e direitos adquiridos após 31 de dezembro de 1995, ao custo de aquisição dos bens e direitos não será atribuída qualquer correção monetária. (g.n)

Com base nestes dispositivos, os valores dos imóveis escolhidos pelos contribuintes para fins de incorporação em pessoa jurídica são inferiores aos valores venais, de mercado ou quaisquer outros apontados pelos Fiscos municipais.

Fato é que, conforme se passa a expor, a tese de repercussão geral constante no RE 796.376 jamais teve a finalidade de autorizar que os Municípios tributassem com ITBI a diferença entre o valor histórico do bem e o seu valor de mercado, caso o contribuinte incorporasse os imóveis no capital social da Holding Patrimonial pelo valor histórico declarado no IRPF.

O RE 796.376 adveio do mandado de segurança 0003169-14.2010.8.24.0062, impetrado por Lusframa Participações Societárias Ltda. contra ato praticado pelo Secretário da Fazenda Municipal de São João Batista/SC.

Os fundamentos do mandado de segurança da Lusframa podem ser resumidos no fato de que o Município deferiu apenas parcialmente a imunidade prevista no inciso I do §2º do art. 156 da Constituição da República, alegando, para tanto, que a operação pretendida, que será esmiuçada a seguir, não está abrangida pela invocada limitação ao poder de tributar.

Analisando os autos do RE nº 796.376 percebe-se que o caso sub judice consistia no fato que os sócios da Lusframa não apenas lançaram mão do direito previsto no art. 23 da Lei nº 9.249/95, mas também fixaram capital social inferior à própria soma do valor de incorporação dos respectivos imóveis.

De fato, naquele caso, enquanto o capital social da contribuinte totalizava a quantia de R$ 24.000,00 (vinte e quatro mil reais), a soma do valor histórico dos respectivos imóveis perfazia o total de R$ 802.724,00 (oitocentos e dois mil setecentos e vinte e quatro reais).

Assim sendo, tem-se que o debate ocorrido no âmbito do RE nº 796.376 estava restrito à comparação entre o valor do capital social e o valor de incorporação dos imóveis, escolhido pelo contribuinte no exercício do direito previsto no art. 23 da Lei nº 9.249/95.

Este excesso que, no final das contas, a Suprema Corte entendeu como tributável via ITBI, adveio do fato de que os sócios da Lusframa, para adquirir a quotas subscritas por cada um deles, transferiam à sociedade imóveis cujo valor adotado para fins de incorporação superava o preço da participação societária adquirida.

Basta ler os autos do RE nº 796.376 para ver que, no contrato social da empresa recorrente, todos os sócios, para adquirir 4.000 quotas cujo preço totalizava R$ 4.000,00 (quatro mil reais), transferiam imóveis cujo valor por eles arbitrado para fins de incorporação superava o custo de referida participação societária, sendo que o numerário excedente integraria a sociedade a título de ágio.

Isto inclusive constava no parágrafo quinto da cláusula quinta do contrato social da Lusframa.

No caso apreciado no RE nº 796.376, como o pagamento dos sócios pelas quotas da respectiva empresa superava o valor nominal atribuído a elas, o quantum excedente adentraria a empresa a título de reserva de capital, na modalidade ágio, que não se confunde, nem em termos contábeis nem em termos jurídicos, com os valores destinados à formação do capital social.

Assim sendo, quando os sócios decidem conferir à empresa bens cujo valor de incorporação é superior ao preço da participação adquirida, tem-se que eles não estão efetuando a realização de capital prevista no art. 156, §2º, inc. I, da Constituição, mas criando uma reserva de capital, sendo que esta verba e aquela não se confunde para fins jurídicos e contábeis.

É imprescindível ter em mente a distinção entre as contas de capital social e de reserva de capital, pois ao se debruçar sobre o inteiro teor do v. acórdão proferido nos autos do RE nº 796.376, compreende-se facilmente que a Suprema Corte, longe de estar versando sobre a diferença entre valor de incorporação e valor de mercado (ou valor venal, atualizado etc), está tratando sobre o excesso decorrente da diferença entre o valor de incorporação e o capital social, o qual, como visto até aqui, adentra a empresa não a título de realização/integralização, mas na forma de reserva de capital.

Logo, tem-se que o RE nº 796.376 não está amparado na utilização, para fins de incorporação, do valor histórico do imóvel, que, invariável e inevitavelmente, é inferior ao valor de mercado ou venal.

Esta afirmação fica clara na leitura do voto do Ministro Alexandre de Moraes:

 “O que não se admite é que, a pretexto de criar-se uma reserva de capital, pretenda-se imunizar o valor dos imóveis excedente às quotas subscritas, ao arrepio da norma constitucional”.

Posto isto, cabe concluir que se a operação pretendida pelo contribuinte não indicar a criação de uma reserva de capital, torna-se inaplicável o RE nº 796.376, cabendo aos Municípios reconhecer a imunidade de ITBI quando, independentemente do valor de incorporação, todo ele estiver destinado à finalidade mencionada no art. 156, §2º, inc. I, da Constituição da República, ou seja, integralização de capital social.

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